ARMAS: ALÉM DO SIM OU DO NÃO

No dia 23 de outubro votaremos no referendo sobre o desarmamento, que tem gerado uma polêmica imensa. Apesar das acaloradas discussões que suscitou, é gritante o desconhecimento em relação às conseqüências da proibição ou não do comércio de armas e de como é, em si, nas suas regras e previsões, o Estatuto do Desarmamento. Portanto, é importante uma análise do Estatuto em si para podermos nos posicionar a respeito.

Muito tem se falado em desarmar a população ordeira, mas este não é um imperativo do Estatuto. Hoje, seguindo as regras do mesmo, existem duas formas de posse de armas: o porte e registro, que dá direito de ir e vir com a arma, e somente o registro, que dá direito de manter uma arma na residência ou local de trabalho.

A conseqüência imediata do Estatuto é a dificultação criada para a obtenção de porte de arma de fogo e a imposição de mecanismos mais eficazes de controle destas armas. Esta dificultação se dá no âmbito dos requisitos para obtenção do porte e da majoração de preços para tal.

O que há, hoje, é uma campanha para entrega de armas de fogo mediante remuneração. A entrega é voluntária e livre de encargos com a justiça, logo, é uma campanha de mera adesão, não sendo um imperativo legal. Apesar disto ser de fácil compreensão, tem gerado grande confusão para muitos, que estão pensando ser obrigatória a entrega das armas que possuírem.

Então, onde incide a aprovação ou não do comércio de armas de fogo e munição? A aprovação deixa a situação exatamente como está posta hoje. Com a proibição, consoante o artigo 35 da lei 10826/03, fica “proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei” (destaque nosso).

Uma análise minuciosa do artigo 6º mostra que em seu rol não constam, entre todas as pessoas ou entidades a quem o Estatuto permite o acesso à armas de fogo e munição, os civis que não sejam de área rural e dependentes do emprego da arma de fogo para subsistência. Assim sendo, somente estes não poderão ter acesso a armas de fogo e munição, já que não poderão comprá-las.

Aqui, torna-se de suma importância um destaque. Muitos têm defendido a tese de que, embora seja proibida a venda em território nacional, poderiam os civis que não sejam residentes de área rural adquirir suas armas e munições no exterior, tendo apenas que promover seu registro em âmbito nacional. Porém, ao meu entender, isto não é possível devido a duas imposições legais. Em uma primeira visão, temos que o artigo 8º, §1º da LICC (Lei de Introdução ao Código Civil) preceitua que, em se tratando de bens móveis, aplicar-se-á a lei do país em que é domiciliado o proprietário, ou seja, seria aplicada a lei brasileira que no artigo 17 do Estatuto do Desarmamento condena à pena de quatro a oito anos e multa quem “adquirir, alugar, receber, transportar, conduzir, ocultar, ter em depósito, desmontar, montar, remontar, adulterar, vender, expor à venda, ou de qualquer forma utilizar, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” (destaques nossos). A contrário senso, poderia o aplicador da lei entender que a mera compra de uma arma não seria uma atividade comercial, por não haver habitualidade ou outro requisito, ou ainda não considerar o adquirente proprietário uma vez que restaria configurada a fraude a lei, o que retiraria a eficácia do ato de compra e venda. Mesmo assim, não se afastaria a conduta do adquirente da tipificação do artigo 18 do Estatuto, que condena à pena de quatro a oito anos e multa quem “importar, exportar, favorecer a entrada ou saída do território nacional, a qualquer título, de arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização da autoridade competente” (destaques nossos).

Não obstante, importa salientar que o rol deste artigo não é numerus clausus, ou seja, ele permite que uma nova lei o complemente ou o magistrado o faça mediante interpretação em processo judicial. Segundo sua redação: “é proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria [...]” (destaque nosso). Por outro lado, é preciso considerar que a eventual proibição do comércio de armas não obriga que qualquer pessoa devolva as armas legalmente adquiridas antes da publicação desta proibição.

A favor da comercialização de armas de fogo e munição pesa o argumento que alega a ineficiência do Estado como garantidor da segurança do cidadão, o argumento do direito à legítima defesa e o argumento, muito bem articulado pelos seus defensores, de que a liberação do comércio de armas não passa da legitimação de um direito a ter uma arma (possibilidade) e não de um dever de tê-la (causa e efeito).

Além destes, há outro argumento: se o Estatuto indica, no seu artigo 10, que, em determinados casos, há a necessidade do cidadão possuir o porte de arma (às pessoas que demonstrarem “a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física”), é uma contradição dar-se este direito (reconhecer uma eventual necessidade) e impedir seu exercício (negar atenção).

Os argumentos referentes à ineficiência do Estado como garantidor da segurança pública e o do direito à legítima defesa estão intimamente ligados. Embora, no atual contexto, a situação à qual se refere o primeiro argumento seja uma realidade, o direito a legitima defesa não é sua solução, pois é um direito que dificilmente poderá ser exercido.

Uma arma caseira registrada na conformidade com a lei deverá estar muito bem escondida para que seu possuidor não se enquadre no artigo 13 da lei que prevê pena de detenção, de um a dois anos, e multa para quem “deixar de observar as cautelas necessárias para impedir que menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa portadora de deficiência mental se apodere de arma de fogo que esteja sob sua posse ou que seja de sua propriedade” (destaque nosso). Logo, tendo presente que o "bandido" sempre tem a seu favor o elemento surpresa e que o proprietário precisará buscar a arma em um local de difícil acesso, conclui-se que, neste ínterim, o direito à defesa via arma de fogo muito dificilmente será exercido.

Na hipótese de porte, acontece o mesmo. A abordagem do assaltante é direta e de surpresa. A arma da vítima se encontrará em um local diverso de sua mão. Dentro dessa perspectiva, fica difícil usar o argumento de violação do direito à legítima defesa, pois, via-de-regra, este não poderá ser exercido de maneira que não implique em um perigo muito maior à vítima. Exceções, neste caso, apenas confirmarão a regra.

Dizer que se está lutando por um direito de ter armas e não um dever pode nos parecer muito coerente e justo em uma primeira abordagem. Porém, há de se questionar se esse exercício de direito por parte de um não traz prejuízos aos demais. Aqui temos o contra-ataque da campanha do sim baseada nos homicídios passionais e acidentes domésticos e urbanos.

Resta o último argumento levantado, porém, este também poderá sofrer reparos na medida em que o rol do artigo sexto não é taxativo e pode ser emendado via nova legislação ou interpretação judicial, ou seja, pode o referendo não ter valor prático. Outra contra-argumentação que pode ser levantada é que: se já se sabe que a possibilidade de exercer a legítima defesa pela arma é mínima, não seria mais eficaz utilizar o dinheiro que seria empregado para retirar o porte, fazer o registro e comprar a arma para contratar um segurança particular? Não só é possível como seria muito mais eficaz.

Outra argumentação usada pelos defensores do comércio de armas é o fato de que os “bandidos” não entregarão suas armas. Sim, isto é fato, porém, não podemos deixar de lembrar que uma lei tem caráter geral, aplica-se a todos. Os “bandidos”, obviamente não entregarão suas armas, mas isso não impede que eles, por serem “bandidos”, não sofram as sanções da lei. Este argumento tem sido usado de maneira pouco inteligente, dando sempre a entender que os “bandidos” não seriam abarcados pela legislação. Isso, colocado para um conhecedor do direito, não gera maiores conseqüências, porém, colocado a leigos, pode gerar uma grande confusão e um grande engano.

Contra a comercialização de armas pesa argumento, amparado por pesquisas, que apontam que a posse de uma arma de fogo traz mais risco à vida do que proteção. Além deste, existem outros argumentos que têm por enfoque esvaziar os argumentos dos que entendem que deva ser permitida a comercialização. O principal deles, abordado anteriormente, indica que a legítima defesa não se verifica faticamente. Porém, há outros argumentos que merecem atenção, tais como os que visam à prevenção de acidentes domésticos e urbanos. Por exemplo, a situação de um pequeno acidente de trânsito, o qual, pelo exaltamento das partes e pela presença de uma arma, pode tornar-se uma tragédia.

Numa outra dimensão, é possível constatar que toda a discussão sobre a liberação ou não do comércio de armas e munição da visibilidade a desigualdade e ao aumento do individualismo em nossa sociedade. Quando a discussão é entre leigos a tendência dos que defendem a comercialização é assumir uma postura raivosa apoiada em argumentos do tipo: se vagabundo entra na minha casa para roubar tem mais é que levar chumbo. É preciso refletir sobre esses posicionamentos. Vivemos em uma sociedade muito desigual, onde os mais pobres, que são maioria, não têm condições de manter-se dignamente. A exploração e a dominação características do regime do capital geram o pobre e geram a violência. Reagir armado sobre as conseqüências não eliminará as causas da violência.

Nesse sentido, há um aspecto que chama a atenção em tudo isso. Muitas pessoas estão se colocando em uma posição de divindade, capazes de distinguir quem é “vagabundo” e quem não é. Ou, numa hipótese pior, exercer um direito de vida e morte sobre outrem. Seria “vagabundo” o pai de família que trabalha o dia inteiro, chega em casa e vê, dia após dia, os filhos com fome e decide tomar uma atitude extrema para superar esta miséria? Penso que não. Indo mais além, seria possível pensar que ele está usando de legítima defesa contra o sistema que o oprime?

Penso ser a hora de proibir-se a comercialização de armas. Penso isso por todos motivos já explicitados e porque já há estatísticas da polícia federal indicando uma corrida armamentista civil pós-estatuto, fato que deverá se consolidar e aumentar com uma não proibição do comércio de armas devido ao fetichismo das propagandas pró e contra armas.

Porém, seja a favor ou contra, é imprescindível que haja uma conscientização sobre o tema. É preciso evitar que haja uma corrida armamentista civil e que se deposite nas armas a esperança de acabar com a violência. Mais importante que a aprovação ou não do comércio de armas é esta conscientização da população sobre as causas da violência e sobre como transformar este contexto, na luta por políticas públicas que diminuam a desigualdade social e promovam o cuidado e a solidariedade.

Em tempo, uma breve palavrinha sobre o referendo em si. Muito o estão menosprezando, dizendo ser uma vergonha se gastar tanto com algo assim. Pergunto: já viram tantas pessoas, de classes tão diferentes, comentarem e se in formarem sobre um mesmo assunto, independentemente da posição que adotem? O primeiro aspecto é que o referendo é necessário, a divergência de opiniões por si só mostra a importância dele. O segundo aspecto vem em resposta à pergunta, pois desde o impeachment do presidente Color não há tamanha interação entre as pessoas. Qualquer destes aspectos, por si só, referendam o referendo.

Tadavia, parafraseando Suzana de Souza Gutierrez, "deixo com vocês os restantes Nós na Rede. Vale a pena viajar pela riqueza de argumentos e posturas".






2 Comentários:

<< Home